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Superproduzidas, lives dos sertanejos lucram e causam polêmica na pandemia

Artistas têm milhões de acessos durante as transmissões


Por Folhapress Publicado 08/04/2020
Foto: Reprodução/YouTube

Depois de quase quatro horas ao vivo no YouTube, Gusttavo Lima canta sua música “Mundo de Ilusões” enquanto mexe no celular na sala de sua mansão em Goiânia. No meio da performance, sai andando pela varanda, passeia pela piscina e pede –”bota a mão pra cima!”. Em seguida, anuncia a ida ao intervalo.

Voltamos em cinco minutos! Precisamos mijar, depois do tanto que eu já bebi.”
Não havia público, pelo menos na casa do cantor. Na plataforma de vídeos, contudo, ele atualizava os números de tempos em tempos, chamando sua transmissão de “maior live de todos os tempos”. Foram cem músicas no repertório, vários baldes de cerveja, conversas com o público e com seu filho, propagandas e anúncios de doações em pouco mais de cinco horas de imagens.

Exibida num sábado no fim de março, a live de Gusttavo Lima foi chamada de “Buteco em Casa” e acabou sendo um marco deste novo formato, cada vez mais usado por artistas – não só músicos – em tempos de isolamento devido à pandemia do novo coronavírus. Até então, as lives eram caseiras, geralmente com voz e violão, filmadas do celular, sem microfone e com poucos minutos de duração.

A sensação, pelo menos para quem estava nas redes sociais naquele momento, era de que o Brasil inteiro estava vendo o show –como num capítulo final de novela ou um paredão de grande apelo no “Big Brother Brasil”. Não chegou a tanto, mas a audiência total – 10 milhões de pessoas só no dia, com pico de 750 mil acessos simultâneos e 500 mil de média só no YouTube, fora outros 160 mil no Instagram – se tornou um recorde da plataforma.

No mesmo dia da transmissão de Gusttavo Lima, o nome de Jorge e Mateus já pipocava internet afora, com pedidos dos fãs para uma live da dupla. Junto a Lima, Marília Mendonça e Luan Santana, a dupla é uma das mais populares do sertanejo, o gênero mais consumido no Brasil. “Lives musicais são uma tendência concreta diante do cenário que estamos vivendo”, diz Jorge. “O mercado musical, com a ausência dos shows, precisou se reinventar. E essa é uma forma segura de levar o entretenimento para dentro dos lares. Cantar e levar um pouco de alegria para quem está em casa é também válido nesse momento.”

A dupla entrou ao vivo uma semana depois de Gusttavo Lima, já com um cenário mais favorável. Enquanto, no caso do cantor, o público esperava uma transmissão básica, como quando Marília Mendonça cantou covers em voz e violão no celular, com a dupla a expectativa já estava lá em cima. Jorge e Mateus cantaram cerca de 60 músicas num cenário montado numa garagem, por quase quatro horas e meia. A estrutura foi um pouco mais modesta que a de Gusttavo Lima – que iluminou a mansão com luzes coloridas e foi filmado até por um drone -, mas ainda assim chamativa, com quatro câmeras de alta definição e intervalos gravados, entre outros luxos.

O resultado foi mais de 3 milhões de acessos simultâneos para quase 40 milhões de visualizações até a publicação desta reportagem, mais que triplicando o recorde de Gusttavo Lima no YouTube. Um acesso não representa a audiência de uma pessoa, já que ela pode entrar e sair várias vezes durante a live, mas, caso a conta fosse essa, e considerando a métrica da Grande São Paulo, o show teria passado os 15 pontos no Ibope. Representaria metade da audiência do paredão entre Manu Gavassi e Felipe Prior, que bateu 31 pontos, no dia 31 de março.

A conta é grosseira, mas dá a dimensão do sucesso da live, que chegou até a ser transmitida na televisão. Esse formato de live-maratona, com instrumentos e microfones ligados, garçons servindo bebidas e diversas câmeras, também gerou críticas pela quantidade de pessoas trabalhando aglomeradas. Ao repórter, a dupla diz que “não houve aglomeração”.

“Nossa equipe contou com 18 pessoas no total. Na montagem, dividimos as equipes por dias e horários. A equipe de cenário montou na sexta, a equipe de som montou no sábado de manhã, e a equipe de filmagem entrou com os equipamentos no sábado à tarde e já ficou para a live.” “Além da divisão da entrada das equipes, como já mencionado, chegamos minutos antes do início da live, a fim de evitar aglomerações. A instrução para quem entrava na casa era a lavagem das mãos, primeiramente. Máscaras e luvas foram entregues para todos que estavam presentes. Deixamos algumas a mais disponíveis na casa, caso alguém precisasse. Frascos de álcool em gel foram espalhados pelo local.”

Durante o show, inclusive, foi exibida uma mensagem de cerca de 50 segundos do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, agradecendo aos artistas que estão fazendo lives e incentivando os fãs a ficarem em casa. O vídeo já havia sido veiculado, horas antes, na live do forrozeiro Xand Avião, com pico de 634 mil visualizações simultâneas. Segundo a dupla, a iniciativa partiu deles, já que o vídeo mencionava os cantores. “Houve a divulgação de um vídeo onde ele citou o nome da dupla. Tivemos conhecimento, pedimos autorização e decidimos publicar durante a live, já que a mensagem era muito válida.”

No dia seguinte à transmissão, o presidente Jair Bolsonaro disse que integrantes de seu governo “viraram estrelas” e que a hora deles iria chegar. Outra característica dessas lives são as doações. Tanto Gusttavo Lima quanto Jorge e Mateus anunciaram nos shows quanto estavam arrecadando. O cantor chegou a juntar R$ 100 mil em doações, além de toneladas de alimentos e itens para hospitais e instituições de caridade. A dupla disse ter arrecadado 216 toneladas de alimentos, além de 10 mil frascos de álcool em gel.

Artisticamente, as lives também revelam facetas menos comuns dos artistas. Com alto poder de investimento, os sertanejos costumam aparecer cantando afinados e acompanhados por bandas imensas em seus DVDs. No YouTube, eles estão suando, esquecendo letras, desafinando e perdendo a voz, além de interagirem com a família e até improvisarem pedidos dos fãs. O formato vai além do barzinho e se assemelha muito mais a uma festa privada regada a álcool, da qual os fãs são convidados virtuais.

“O tempo já não foi uma novidade. Já nos apresentamos em shows com três a quatro horas”, diz Mateus. “Para a gente, é meio estranho cantar assim, somente para as câmeras. Sentimos falta do calor humano, uma das melhores sensações é esse contato com o público. Sentar ali, sem ver quase ninguém, parece que está faltando algo. Mesmo assim, a emoção de saber que existem pessoas felizes em todo o canto do mundo assistindo a nossa live é imensa.”

Os números estabelecidos por Gusttavo Lima, Jorge e Mateus e até mesmo Xand Avião surpreendem mesmo quando se fala em astros da TV Globo. Por isso, o lucro com a propaganda está em outro patamar quando comparado com a maioria dos cantores no Brasil. Ainda assim, a publicidade indica caminhos para músicos conseguirem trabalhar e ganhar dinheiro durante a quarentena.

Na “Live da Garagem”, de Jorge e Mateus, uma geladeira da bebida patrocinadora ficou exposta ao lado dos músicos. No “Buteco” de Gusttavo Lima, a publicidade da cerveja era explícita, já que ele elogiava a bebida enquanto um garçom trocava o balde com as garrafas em uma mesa. Enquanto as lives vão se estabelecendo, algumas questões ainda seguem sem resposta. O Ecad, que arrecada e distribui o equivalente aos direitos autorais em execuções públicas no Brasil, ainda não sabe como vai fazer para repassar o dinheiro aos autores.

Plataformas como YouTube, Facebook e Instagram já têm contratos com o Ecad, mas em geral eles são referentes aos fonogramas –a música gravada– e não à obra –a música tocada. Para que os repasses sejam feitos, é necessário que os repertórios das lives sejam reconhecidos pelas respectivas plataformas e repassados à empresa.

Na tentativa e erro, o mercado de shows vai estabelecendo um formato que pode ser não só viável, como lucrativo, para enfrentar a quarentena. O processo começa e pode se restringir ao topo da cadeia da música, já que lucrar com patrocínio é muito mais difícil para a grande maioria de cantores e instrumentistas do país.

No sertanejo, contudo, a batalha por views deve seguir quente nos próximos dias. Marília Mendonça se apresentaria na noite de 8 de abril e anunciou que terá câmeras fixas e equipe reduzida – só oito pessoas, incluindo dois tradutores para Libras. No dia 11, Gusttavo faz a segunda edição do “Buteco em Casa”. Nem por isso, diz Mateus, a situação é favorável. Financeira e artisticamente, as lives não se comparam a shows presenciais, com venda de ingressos e bebidas.

“São quase 15 anos de carreira vendo nossos fãs pessoalmente, praticando abraços, valorizando o tato. Estamos fazendo o possível para estarmos em contato com nossos fãs e, por enquanto, a forma mais segura que achamos foi essa digital. Mas a gente espera que tudo isso passe logo.”

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