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Violência no Rio faz fiéis evitarem cultos e centros espíritas à noite

Proteção é o que eles buscam nos templos de suas respectivas religiões, mas é justamente por se sentirem desprotegidos num estado onde 6.714 pessoas foram assassinadas no ano passado que eles têm pensado duas vezes antes de sair de casa para professar sua fé.


Por Folhapress Publicado 27/05/2019
Foto: Ricardo Borges/Folhapress

Elas podem divergir e até brigar entre si. Mas igrejas de vários credos se unem num ponto, diz a evangélica Roberta Sousa, 37: “O Rio tá foda”.
Ela ri e logo pede desculpas pela linguagem que “não é de Deus”. Mas a violência no Rio de Janeiro chegou a tal ponto que tanto Roberta, fiel de uma igreja batista, quanto sua irmã Márcia, 40, espírita, desistiram de frequentar encontros de suas religiões após anoitecer.

Para Roberta, o alerta soou quando leu nos jornais sobre um assalto a uma igreja no bairro delas, Méier (zona norte), no último dia 4. Homens armados invadiram o culto da Adventista do 7º Dia e fizeram a limpa em dezenas de fiéis, levando inclusive dinheiro separado para o dízimo.

Já Márcia ficou encucada quando renderam o funcionário querido de uma lanchonete próxima ao centro espírita onde trabalha como médium. “Naquele dia eu até senti um aperto e não fui tomar o cafezinho que sempre tomo lá. Quando soube o que fizeram com o Tião, saquei que não foi só só pressentimento, foi proteção espiritual mesmo.”

Mas essa é precisamente a ironia, dizem à Folha líderes e adeptos de crenças diversas. Proteção é o que eles buscam nos templos de suas respectivas religiões, mas é justamente por se sentirem desprotegidos num estado onde 6.714 pessoas foram assassinadas no ano passado que eles têm pensado duas vezes antes de sair de casa para professar sua fé.

O levantamento do Instituto de Segurança Pública indica apenas o que, no jargão técnico, é enquadrado como “letalidade violenta” (homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e morte por intervenção de agente do Estado).

Há ainda que se considerar o tanto de assaltos, esses aí em qualquer canto da cidade. Como o sofrido por um padre e fiéis um ano atrás, numa igreja católica da Vila Kennedy, comunidade na zona oeste carioca.
O grupo participava de um mutirão de confissão da Páscoa quando um homem encapuzado entrou na paróquia Cristo Operário e Santo Cura D’Ars e apontou um revólver para a cabeça de todos ali. Até aliança de casamento levou naquele dia.

Em março, o próprio arcebispo do Rio, dom Orani Tempesta, lembrou à reportagem sobre os dois assaltos a mão armada que sofreu em menos de um ano, entre 2014 e 2015. Na primeira vez, roubaram anel, cordão e crucifixo do cardeal. Na segunda, o carro em que estava.

Em 2016, novo susto: um tiroteio entre policiais e bandidos irrompeu em Santa Teresa, onde dom Orani, que voltava do Cristo Redentor, estava preso num engarrafamento. Seu motorista deu ré para escapar.
Templos têm se adaptado como podem à rotina de violência no Rio. O babalorixá Márcio de Barú lidera sessões de candomblé em seu terreiro na Penha, bairro que faz fronteira com o Complexo do Alemão. Ultimamente os atabaques, instrumento típico no credo, têm silenciado mais cedo.

“Antigamente, o pessoal saía sem hora pra voltar, despreocupado. Não tinha esses fatos que acontecem hoje. No fim de semana, começávamos às 22h e íamos até de manhã. Agora não dá mais pra fazer isso.”
Na semana passada, um centro umbandista próximo ao morro Chapéu-Mangueira realizava uma festa noturna para pretos-velhos, que são entidades dessa religião. Menos de 20 pessoas, fora os médiuns, assistiam. O movimento por lá, segundo dirigentes, caiu bastante, uns 20%, de um ano pra cá.

Tem-se notícia até de arma apontada para pessoas incorporando entidades de religiões afro-brasileiras.

Dirigente da umbandista Casa do Irmão Francisco, Josefina Maria Albino detectou uma queda de, em média, 50% na frequência das sessões semanais, que acontecem de 20h às 22h. O centro kardecista fica em São Cristóvão (zona norte), “bairro que infelizmente está bastante violento, com assaltos constantes a pedestres”.

A maioria dos assíduos tem 60 anos ou mais, “um público mais suscetível” a esse tipo de achaque, diz. E daí já sabe: “Eles estão deixando de frequentar”.
Médiuns que moravam em bairros distantes já não vêm mais. “Restou quem mora no entorno.”

“Algumas igrejas estão readequando seus horários por causa do ir e vir. Não é só o fato de o templo estar em lugar de risco. É a disposição das pessoas de estarem em trânsito domingo à noite, algo recorrente antes”, diz o pastor batista e cientista político Valdemar Figueredo Filho.

Até por uma questão de tradição, os cultos de domingos, ele lembra, “eram o evento mais concorrido anos atrás”. Não mais.

Há menos fiéis indo neles e a predisposição para diminuir, até mesmo eliminar, reuniões noturnas, um horário mais vulnerável.

Líder da Primeira Igreja Batista, na favela do Juramento, Dercinei Figueiredo decidiu: escureceu, já era. Desde março não realizam mais cultos dominicais à noite.
“As novas rotinas dos membros pesaram significativamente. E elas são pautadas pela violência real e pela expectativa de violência”, afirma.

Eles já tiveram de lidar com homens armados que invadiram o templo em busca de um ladrão que se escondera lá, sem que os integrantes da igreja soubessem.

Nem sempre “o uso da razão, da prudência”, prevalece, diz o pastor Valdemar. “Tem gente que espiritualiza a situação da violência, e aí o culto vira um pouco isso: estão ali na bravura, mencionando épocas em que amar a Deus tinha riscos. Uma visão totalmente distorcida, mais mágica do que teológica.”

José Mário Franqueira assina embaixo. Pai de santo no Templo Espiritualista Colina Missionária, em Del Castilho (zona norte), ele já cansou de ouvir esse papo de que os guiais espirituais blindarão a pessoa, então tudo bem ela se enfiar em situações arriscadas. “Isso de dizer ‘os orixás protegem’. Mentira, não funciona!”

Bíblias online, cultos televisionados e ciclos de leitura espírita feitos por conferência virtual ganharam espaço no dia a dia das irmãs Márcia e Roberta, que já perderam um primo num latrocínio. Ele, como Márcia, era espírita, uma doutrina que crê na reencarnação.

“Até brinco: tomara que, na próxima vida, ele more, sei lá, na Dinamarca, um desses lugares onde tem um assalto por ano, se muito.”

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