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Médicos ignoram queixas de cólicas, e diagnóstico de endometriose demora

Doença prejudica fertilidade


Por Nani Camargo Publicado 09/11/2019

A ideia de que sofrer com cólicas fortes é normal está tão arraigada no imaginário humano que, por causa dela, todos os anos milhares de mulheres deixam de descobrir que têm uma doença potencialmente grave: a endometriose.
No mundo, uma a cada dez mulheres sofre com este problema, que causa dores abdominais por vezes incapacitantes, e nos casos mais avançados, a obstrução de órgãos.
O desconforto no sexo também é um dos principais sintomas. Um estudo recente realizado pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) mostra que a frequência de relações sexuais e de satisfação nelas é ao menos 30% menor nas mulheres com endometriose do que naquelas sem a doença.
Quem conduziu essa e outras pesquisas foi o professor Eduardo Schor, mestre, doutor e coordenador do Setor de Endometriose do Departamento de Ginecologia da Unifesp. Schor foi eleito Presidente da Sociedade Brasileira de Endometriose (SBE), e vai tomar posse em janeiro de 2020.
“No Brasil, 50% das mulheres com endometriose têm algum grau de depressão. Essa mulher sente dor e todo o mundo acha que é frescura. Às vezes, ela chega a perder o emprego. Temos que estar atentos”, diz.
Para ele, um dos principais problemas da endometriose no país é a demora no diagnóstico pela falta de conhecimento.
Se nos consultórios sobra desinformação, na internet não são raros supostos especialistas oferecendo tratamentos milagrosos, e até mesmo questionando o trabalho da própria SBE. Schor alerta para o risco:
“Não escolha seu médico pela quantidade de seguidores que ele tem nas redes sociais”.

PERGUNTA: Por que estão aumentando os casos de endometriose no Brasil?
EDUARDO SCHOR: Na verdade, a gente não sabe se estão aumentando. Temos feito muito mais diagnósticos, e temos muito mais conhecimento sobre a doença. Então não sabemos se a doença está realmente aumentando ou se a gente está reconhecendo-a mais.

P: Há pessoas que chamam de “a doença da mulher moderna”. Essa doença não existia antigamente?
ES: Temos registros dessa doença desde por volta de 1800. As pessoas começaram a chamar de “doença da mulher moderna” porque as novas gerações são diferentes da geração das nossas avós, que até podiam ter endometriose, mas, como tinham filho cedo, o pouquinho de doença desaparecia com a gravidez. Hoje, como as mulheres têm o primeiro filho depois dos 35, ficam expostas por mais tempo à menstruação. Essa seria uma hipótese.
Mas há fatores da vida da mulher moderna que poderiam influenciar no desenvolvimento da doença?
Achamos que sim. Vemos aumento de endometriose e de doenças que dependem de estrogênio, como o câncer de mama em mulheres jovens, e miomas. Então a gente acredita que tem alguma coisa acontecendo, mas ninguém descobriu o que é.

P: Quanto tempo em média uma mulher demora para conseguir o diagnóstico correto de endometriose?
ES: Um estudo recente que fizemos na Unifesp diz que são 61 meses entre o primeiro sintoma e o diagnóstico. A mulher fica sem tratamento nenhum por cinco anos e, quando consegue o diagnóstico, a doença já está avançada. Aí resposta ao tratamento medicamentoso é mais difícil, e a gente acaba pendendo mais para a cirurgia.

P: Por que essa demora?
ES: Primeiro pelo desconhecimento da população leiga dos principais sintomas da doença e pela desvalorização da cólica pela classe médica. É superfrequente eu receber mulheres que estão se queixando de cólica há cinco anos e os médicos falam que não é nada, que é normal. Existe um consenso de que menstruar com dor faz parte do universo feminino. Muitas vezes a mulher reclama e o médico não dá bola.
Entre os exames mais pedidos pelos ginecologistas está o ultrassom. A endometriose aparece no ultrassom?
No ultrassom convencional, a endometriose não aparece, nem mesmo nos casos mais avançados. Só quando a doença está no ovário. É preciso fazer um ultrassom especializado para detecção da doença, com preparo intestinal, ou a ressonância magnética. Só que, quando a doença aparece nesses exames, ela também já aparece no meu exame de toque em uma consulta ginecológica. Ou seja, ela está avançada. A única ferramenta que a gente tem para a detecção precoce é uma boa consulta médica.
Então estamos lidando com maus médicos?
Temos certamente muitos médicos que não prestam atenção na endometriose.

P: Dor no sexo é um sintoma só dos casos mais avançados?
ES: Não. Tanto essa dor quanto a cólica são progressivos e vão aumentando com o avanço da doença. Começa com um desconforto na profundidade e vai piorando ao ponto de se ter aversão à relação sexual. Avaliamos a qualidade de vida de algumas pacientes na Unifesp perguntando sobre questões como orgasmo e expressão de sensualidade. Quando comparamos esses resultados com as mulheres sem nenhuma doença, os parâmetros são muito inferiores. Com toda justificativa: o cérebro humano nos fazer evitar as coisas que doem. Vemos uma série de problemas conjugais porque a maioria dos homens não entende e acha que a mulher não quer transar porque perdeu o tesão nele ou arrumou outro.

P: O que de pior pode acontecer com uma mulher que tem endometriose grave?
ES: Obstrução de ureter, com o risco de perder os rins, e obstrução de intestino. Mas o mais comum são anos de baixa qualidade de vida. O problema é que são poucos os centros que fazem o tratamento. Na Unifesp, por exemplo, a espera é de cinco a seis anos para uma paciente ser operada.

P: Como se decide se é preciso operar?
ES: É preciso não responder ao tratamento medicamentoso, e aí não sou eu quem decide a cirurgia, mas, sim, a paciente, que se cansa da dor. Outra situação é quando ela está tomando pílula e não tem dor, mas a doença continua avançando, ou quando há a obstrução de algum órgão.
Em quais casos se cogita retirar o útero e os ovários de uma mulher com endometriose?
Se você perguntar para mim qual a cirurgia ideal da endometriose, a resposta é tirar o útero, o ovário e a doença. Só que eu não devo fazer isso. A expectativa da mulher hoje é de mais de 80 anos, então as consequências de tirar o ovário de uma jovem de 35 ou 40 anos são 40 anos de menopausa. Isso significa doenças cardiovasculares, fraturas ósseas, qualidade de vida e de sexo ruins. Se eu tiro o útero dela, a vida dela continua igual, e eu só acabo com a possibilidade de gravidez. Se eu tirar o ovário, não, porque a consequência da falta hormonal é muito maior. O ovário estimula o endométrio, mas ele não é a causa da endometriose, e sim o que alimenta a doença.

P: Operar cura a doença?
ES: Não. Toda vez que eu vou operar uma mulher, ela me pergunta no final da consulta se a doença pode voltar. E sempre pode. Temos uma média de 30% de rescidivas em cinco anos.

P: Toda mulher com endometriose terá dificuldade para engravidar?
ES: Não. Geralmente isso acontece, mas algumas engravidam sem problemas, mesmo com a doença. É óbvio que, quanto mais doença tiver, mais dificuldade vai ter.

P: O que precisa acontecer para mudar o panorama das pacientes de endometriose no Brasil?
ES: Primeiro, uma maior conscientização dos médicos. A Sociedade Brasileira de Endometriose está saindo país afora para dar o primeiro passo, que é alertar sobre a doença. Também queremos instrumentalizar os médicos a fazer o diagnóstico correto e a tratar direito a doença. Temos o Clube da Endometriose, uma reunião transmitida pelo Facebook, onde a diretoria responde perguntas, e, com o apoio da indústria, fazemos as Endotrips, que são cirurgias de endometriose avançada em São Paulo e transmitidas para outra cidade, com alguém da diretoria comentando para os médicos. A sociedade não cobra anuidade, então a única fonte de renda que temos são os eventos.

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