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Governo Doria censura lista de livros de projeto em presídios de São Paulo

Procurado pela reportagem, o governo do estado diz que não houve censura ou veto


Por Folhapress Publicado 11/02/2020
Foto: Roberto Gardinalli/Educadora

O governo João Doria (PSDB-SP) vetou uma lista de livros de projeto de estimulo à leitura que funcionava em penitenciárias do estado de São Paulo. Na relação, havia obras de autores consagrados como o colombiano Gabriel García Márquez, o franco-argelino Albert Camus, o cubano Leonardo Padura e a norte-americana Harper Lee, entre outros.

Procurado pela reportagem, o governo do estado diz que não houve censura ou veto e que não faz juízo de valor dos livros escolhidos pelo projeto.

O programa Remição em Rede, uma parceria do governo com a empresa Jnana Consultoria, o grupo Mulheres do Brasil e as editoras Record, Planeta, Todavia e Boitempo, implementou clubes de leitura em dez penitenciárias na gestão Márcio França (PSB). Na primeira fase do projeto, de setembro de 2018 a agosto de 2019, houve participação de 200 presos.

Além de estimular a leitura, o programa contribuiu para a chamada remição da pena, que consiste na possibilidade de o presidiário abreviar o tempo de cumprimento de sua pena por meio do estudo.

Cada livro lido pode diminuir a pena em quatro dias. O preso pode ler 12 livros por ano e conseguir com isso até 48 dias de remição da pena. Para isso, ele também precisa escrever uma resenha, que é encaminhada ao juiz regional para que seja efetivada a diminuição da pena.

Em julho de 2019, o governo do estado renovou o programa Remição em Rede por mais 12 meses. O objetivo era ampliar o alcance para 400 presos, incluindo mais dez presídios.
No mês seguinte, as quatro editoras participantes doaram 240 exemplares de 12 títulos, que seriam acrescentados à biblioteca circulante já existente.

Os livros, no entanto, não foram remetidos pela Funap aos presídios. Em dezembro, as organizadoras do projeto solicitaram uma reunião com a fundação, órgão do governo responsável por desenvolver programas sociais nos presídios, para entender o que estava acontecendo.

“Nos avisaram ali que a lista de livros havia sido riscada na íntegra pelo diretor executivo da instituição, o coronel Henrique Pereira de Souza Neto”, afirma a educadora Janine Durand, articuladora do projeto, que tem custo zero para o poder público.

“Depois falaram que o problema estava concentrado em três obras, mas não nos informaram em quais”, afirma. “Essa situação toda nos deixou estupefatos.”

Em razão dos protestos contra a censura, disse Janine, a Funap pediu o envio de uma mensagem de texto com uma justificativa para a escolha de cada um dos livros, o que ocorreu na mesma semana.

A resposta veio no dia 3 de dezembro. Reginaldo Caetano da Silva, superintendente da diretoria de atendimento e promoção humana da Funap, declarou que a justificativa seria encaminhada à chefia de gabinete do instituição.

No texto, o diretor afirma que havia sido indicado “um título que, diante das novas propostas da gestão atual, não atende ao que se espera para a população atendida pela Funap.” Ele não revela no email qual é a obra censurada.

Doze livros formam a lista: “As Cartas Que Não Chegaram”, de Maurício Rosencof; “Vá, Coloque Um Vigia”, de Harper Lee; “Crônica De Uma Morte Anunciada”, de Gabriel Garcia Márquez; “O Estrangeiro”, de Albert Camus; “O Fim de Eddy”, de Édouard Louis; “O Amor Que Sinto Agora”, de Leila Ferreira; “Bonsai”, de Alejandro Zambra; “Caderno de Memórias Coloniais”, de Isabela Figueiredo; “O Quarto Branco”, de Gabriela Aguerre; “Enquanto Os Dentes”, de Carlos Eduardo Pereira; “Cabo de Guerra”, de Ivone Benedetti; e “Paisagem de Outono”, de Leonardo Padura.

Os livros compõem um amplo leque de temas e pode ser difícil apontar os conteúdos que teriam desagradado a direção do órgão do governo do estado. O romance “Cabo de Guerra”, da editora Boitempo, tem como narrador da história um agente de governo infiltrado nos grupos de esquerda durante a ditadura militar brasileira.

Crítica do livro publicada na Folha de S.Paulo aponta que “o que mais atordoa [no livro] não é a brutalidade dos militares, mas a passividade do protagonista. A ausência de culpa sobre os atos que levam à morte de diversas pessoas é transtornante”.

Padura é um dos mais importantes escritores cubanos de sua geração, para citar outro possível óbice para os avaliadores da Funap. “Paisagem de Outono”, da Boitempo, faz parte da tetralogia “Estações Havana”, na qual as investigações criminais do protagonista Mario Conde são utilizadas por Padura para desvelar sua visão sobre a sociedade de Cuba.

“O Fim de Eddy”, da editora Tusquets, é o relato de um processo de formação “marcado pela descoberta sofrida da homossexualidade num ambiente social asfixiante, no qual a fome e a miséria moldavam o cotidiano das pessoas”, segundo análise publicada na Folha de S.Paulo.

Marisa Cesar, CEO do Grupo Mulheres do Brasil, que integra o projeto, afirma “que a leitura ajuda no desenvolvimento e no despertar do estudo”. Ela lamenta a censura.

Criado em 2013 por 40 mulheres de diferentes segmentos, o grupo é presidido pela empresária Luiza Helena Trajano, da rede Magazine Luiza.

Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Planeta, afirma que censurar um livro é algo nocivo, abominável e também pouco inteligente. “Acaba promovendo a própria obra”, afirma. Machado cita o caso Paulo Freire. “Com a perseguição absurda que ele sofre nos dias de hoje, seus livros estão vendendo muito mais.”

Em dezembro, diante da medida adotada pelo governo, as organizadoras do projeto solicitaram a devolução dos livros doados.

“Agradecemos a colaboração e permanecemos à disposição para qualquer outro esclarecimento”, respondeu a Funap na mensagem em que comunicou a restituição.

OUTRO LADO

Em nota, a gestão Doria afirma que “não faz juízo de valor dos livros” e ressalta que “não há nenhum tipo de censura ou veto a livros”.

“As publicações são dos mais diversos gêneros literários, origens e matizes ideológicos. Entre os autores estão George Orwell, Franz Kafka, Gabriel García Márquez, Ernest Hemingway, Mia Couto, José Saramago, Machado de Assis, Jorge Amado, Luiz Ruffato, Marcelo Rubens Paiva, Marçal Aquino, Fernando Moraes, Patrícia Campos Mello, Aldous Huxley, Jack London, Ian McEwan e J.M. Coetzee”, diz o texto enviado pela assessoria de comunicação da Funap.

O governo do estado acrescenta que “faz um rodízio de títulos e é possível que os livros sugeridos entrem futuramente para remição pela leitura”.

“Os detentos podem ter acesso aos outros 650 mil livros que estão disponíveis nas bibliotecas das unidades prisionais. Por isso, não há nenhum tipo de censura ou veto a livros. Será realizada uma reunião nesta quarta-feira (12) com a colaboradora que sugeriu os títulos para debater a inclusão das publicações. O encontro estava agendado para segunda (10), mas não foi realizado por causa das chuvas que atingiram a capital”, completa a nota.

TENDÊNCIA

A medida do governo paulista encaixa-se em contexto mais amplo de censura a obras artísticas no Brasil.

No começo do mês, a Secretaria de Educação de Rondônia distribuiu um memorando e uma lista de livros para serem recolhidos das escolas por conterem o que foi definido como “conteúdos inadequados” a crianças e adolescente. A pasta voltou atrás após questionamentos à medida.

A lista das obras censuradas incluía 43 títulos, de autores como Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Euclides da Cunha, Ferreira Gullar, Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca, Franz Kafka, Mário de Andrade e Machado de Assis.

No ano passado, diversos espetáculos foram atacados ou censurados pelo governo federal, sob comando de Jair Bolsonaro, ou por algum de seus órgãos.

Parte deles, como o músico Arnaldo Antunes, a peça “Res Publica 2023”, pôsteres de filmes nacionais que estavam nos corredores e no site da Ancine (Agência Nacional de Cinema) e o longa-metragem “Bruna Surfistinha”, foi reunida em festival contra a censura promovido pela Prefeitura de São Paulo em janeiro de 2020.

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