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Proibidos de receberem visitas, idosos estão mais solitários nos asilos

"Sinto saudade da minha prima e também das pessoas que nos visitavam, traziam café, presentes e cantam música", diz Nair, de 69 anos


Por Folhapress Publicado 04/04/2020
Foto: Sabine Van Erp/Pixabay

Dominique, nique, nique, sempre alegre esperando alguém que possa amar. João (nome fictício) canta esses versos com a sua voz cansada e trêmula aos 68 anos, entre muros de concreto e grades de ferros. Lúcido em boa parte do tempo, ele sofre de esquizofrenia, perdeu o pai aos três anos de idade e não casou e nem teve filhos.

Quando a mãe faleceu, João foi morar no Lar Vicentino, um abrigo de idosos carentes, no bairro de Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo. Há 12 anos enclausurado ali, tem como artifício a cantoria, a reza do terço conforme aprendeu com uma moradora e as histórias de futebol, mais precisamente do São Paulo. Quando não, do Palmeiras, apenas para provocar uma funcionária da casa.

João é fã da Jovem Guarda, mas afamado por suas apresentações de Dominique pelos corredores nos dias de visita – a canção é francesa e gravada pela belga Jeanine Deckers, ou também irmã Sorriso, porque foi freira, e passou a ser interpretada em 1965 no Brasil pela paulista Giane.

Desde quando pisou no asilo, com toda a vida recolhida numa só mala, nunca mais teve notícia de algum parente. Nem por isso deixa de receber visitas, retribui com abraços e beijos, como se até desconhecidos fossem da família.

Se as ruas de megalópoles como São Paulo estão silenciosas e os especialistas receitam exercícios caseiros para amenizar os efeitos da quarentena, há uma parte da população que vivia o distanciamento social antes de o mundo descobrir o novo coronavírus.

“Sinto saudade da minha prima e também das pessoas que nos visitavam, traziam café, presentes e cantam música”, diz Nair, de 69 anos e há seis no Lar Vicentino.

Nair deu entrada na casa depois de sofrer um AVC e teve por 15 dias a companhia da mãe, morta em 2014. Com a disseminação do vírus, as casas de acolhimento ao idoso adotaram medidas mais severas. As visitas foram suspensas antes mesmo de o governador João Doria (PSDB) decretar quarentena em todo o Estado de São Paulo.

A psicóloga Roberta Cristina Seriacopi, do Lar Sant’Ana, afirma que os abrigados demonstraram preocupação com as consequências do isolamento social. “Eles querem saber como é a doença e perguntam se vão conseguir rever filhos e netos [com fim da pandemia]. Mas, ao mesmo tempo, entendem que é melhor todos se protegerem”, disse Seriacopi.

A reportagem não teve contato com eles; no máximo, avistou-os à distância e conseguiu entrevistá-los por intermédio de profissionais de saúde das próprias instituições.

A tecnologia tem sido uma aliada para que os idosos tenham notícia dos familiares e recebam mensagens de amigos. Teresa, 76, estava saltitante na sexta-feira (27) depois da sua irmã ter telefonado para o Lar Vicente.

“Fiquei feliz, pelo menos tenho essa irmã que, como diz, não esqueceu de mim, né. Será que vai demorar para acabar isso daí? É o fim dos tempos, não é?”, diz Teresa.

O risco de contaminação diminuiu o fluxo de pessoas nos abrigos e suspendeu atividades religiosas e de entretenimento. Somente funcionários dos serviços essenciais, como de saúde, limpeza e cozinheiros, cumprem expediente no local. As missas diárias no Sant’Anna, abertas aos familiares, não ocorrem há duas semanas.

Dos 110 funcionários do Lar Sant’Ana, 70 têm comparecido, divididos em turnos diurno e noturno. O residencial é privado e reúne 110 idosos, com tíquete médio de R$ 15 mil por mês.

Os quartos são individuais e têm internet e televisores com canais por assinatura e serviços de streaming. Na área externa, há sala de cinema e teatro; ambos funcionam com poucas atividades e restringem o público.

“Temos médicos, aposentados, desembargadores. Os familiares são próximos via Facetime, ligações de vídeos pelo WhatsApp e, inclusive como atividade lúdica, estão produzindo cartões”, diz Gilberto Camilo da Silva, gerente de longevidade do Lar Sant’Ana.

O efeito financeiro da Covid-19 também chegou ao Lar Vicentino. O asilo na zona leste reúne 34 idosos e, com uma despesa de R$ 120 mil por mês, é mantido pelo lucro do seu bazar, eventos beneficentes e doações.

Simone Prata de Araújo, gerente do abrigo, diz que foram cancelados bingo, galinhada e bacalhoada, que ocorreriam entre março e abril, além da Festa das Nações, em julho.

O bazar, em um salão no mesmo prédio do asilo, fechou as portas no último dia 19 porque não configura comércio essencial. No local, funcionários fazem triagem das doações – são móveis, roupas e utensílios domésticos- e revendem.

“O bazar nos ajuda a pagar quase toda a folha salarial de R$ 70 mil por mês, fora os encargos. Com a Festa das Nações conseguimos um caixa que, por quase um ano, supre o nosso déficit mensal de R$ 20 mil a R$ 30 mil por mês”, diz Araújo.

Segundo ela, a média de gasto com cada idoso é de R$ 3.500 mensais. A casa tem 42 funcionários, inclusive 12 enfermeiras e uma médica. Entre as necessidades estão o consumo de 5.000 fraldas geriátricas por mês e mantimentos para seis refeições diárias.

Na sexta-feira, houve uma reunião da direção do Lar Vicentino com os funcionários para informar que, sem provisão de arrecadações, os recursos são suficientes para manter o abrigo até o mês de maio. A diretoria lançou uma campanha e um vídeo para pedir doações.

Alheios aos problemas financeiros, mas ansiosos pelo fim dessa crise, os reclusos fazem seus planos. “Quero tomar café e bater papo com minhas amigas, quero voltar ao cinema e mais alguma coisa que me divirta”, conta Maria.
João promete que, além de cantar Dominique, vai abraçar e beijar o seu primeiro visitante.

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