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Juiz que censurou Porta dos Fundos já criticou censura a Bolsonaro e se diz homem de fé

Para Benedicto Abicair, 67, era necessário pôr um freio na produção veiculada pela Netflix, "que se apossou de uma obra de domínio público, milenar, que congrega milhões de fiéis seguidores"


Por Folhapress Publicado 10/01/2020
Foto: Reprodução/Porta dos Fundos

Um homem de fé, mas sem credo específico, que já disse considerar “fundamental que o magistrado não julgue exclusivamente sob a letra fria da lei”. Eis o juiz responsável por censurar um especial de fim de ano do Porta dos Fundos que trazia um Jesus Cristo gay e de caso com o diabo.

Para o desembargador do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) Benedicto Abicair, 67, era necessário pôr um freio na produção veiculada pela Netflix, “que se apossou de uma obra de domínio público, milenar, que congrega milhões de fiéis seguidores”.

Pode ter sido a mais ruidosa polêmica na qual Abicair se envolveu até hoje, mas não foi a única.

Se agora achou por bem censurar o especial para “acalmar os ânimos” numa sociedade “majoritariamente cristã”, dois anos antes disse não ver como, “em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja”.

Falava como relator de um recurso apresentado pelo ainda deputado Jair Bolsonaro, condenado em primeira instância a pagar R$ 150 mil por danos morais após dar declarações homofóbicas numa edição de 2011 do “CQC” (Band).

No programa, Bolsonaro disse que nunca passou pela sua cabeça ter um filho gay porque sua prole teve uma “boa educação”. Foi processado, perdeu e recorreu ao TJ-RJ.

Abicair, relator do caso na Sexta Câmara Cível do tribunal, ficou do seu lado, mas foi minoria entre os desembargadores. Afirmou ao votar pela absolvição: “Gostar ou não gostar. Querer ou não querer, aceitar ou não aceitar. Tudo é direito de cada cidadão, desde que não infrinja dispositivo constitucional ou legal”.

O magistrado é tido por colegas como reservado no trata pessoal, mas, por meio de suas decisões e de seus escritos, acumula posições controversas.

Em 2018, rechaçou a ideia de que magistrados formem uma categoria privilegiada. Eles seriam, isso sim, merecedores de penduricalhos “previstos em lei”, e que “se apressem e se inscrevam no próximo concurso para juiz os que desejam ser ‘privilegiados'”, disse em artigo para o site jurídico Conjur.

O desembargador ganha R$ 35,5 mil de salário bruto, que oscilam ao sabor dos benefícios agregados à folha de pagamento. Em fevereiro de 2019, por exemplo, teve rendimento líquido de R$ 58,7 mil.

Abicair pode receber muito acima do teto constitucional de R$ 39,2 mil –assim como grande parte de seus colegas de magistratura. Ainda que, tecnicamente, o limite salarial não seja desrespeitado, e não haja portanto ilegalidade em jogo, os chamados penduricalhos do Judiciário são alvo de críticas da sociedade civil.

“Os candidatos cursaram nove anos de ensino fundamental, três de ensino médio, cinco de faculdade e ao menos três de curso preparatório, totalizando 20 anos em salas de aula, por cinco horas, e outras tantas em casa, inclusive aos sábados, domingos e feriados, varando madrugadas, esquecendo família, amigos, festas, namoros e viagens”, escreveu Abicair.

Os estudos acadêmicos, segundo seu currículo no TJ-RJ, foram até 1977, quando se formou em direito pela UFRJ. Ele começou a carreira no escritório do pai e advogou até 2006, quando foi nomeado desembargador do TJ-RJ pela então governadora Rosinha Garotinho.
Entrou pelo chamado quinto constitucional, cota de 20% das vagas reservada em alguns tribunais brasileiros para advogados ou integrantes do Ministério Público.

Chegou lá com uma ajudinha “do meu amigo” Luiz Fux, à época ministro do Superior Tribunal de Justiça, hoje no Supremo Tribunal Federal. Foi Fux, como Abicair conta numa publicação interna do TJ-RJ de nove anos atrás, quem “vislumbrou que eu seria um bom magistrado”.

A amizade remonta aos anos 1970, quando eram os dois estagiários. “Tornou-se meu padrinho na campanha para conquistar a vaga de desembargador pelo quinto constitucional. Ele foi o principal responsável por minha nomeação, e sei que não se arrepende”, afirmou o desembargador, descrito por colegas do meio jurídico como “um sujeito obscuro na advocacia” até conseguir a promoção.

Quarto Benedicto do clã a virar advogado, ele exaltou na mesma entrevista a felicidade de fazer parte de uma geração que aprendeu o ofício numa época em que “não havia, ainda, assédio moral, direitos previdenciários e trabalhistas para estagiários”.

Isso “possibilitava uma saudável exploração do orientador e um aprendizado mais rápido do estagiário”, disse o desembargador.

O posicionamento sobre um dos principais órgãos do meio são consideradas fortes. Em artigos, Abicair diz ser contra o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), “uma infeliz criação, resquício da ditadura”.

À instituição, na ativa desde 2005, compete controlar a atuação administrativa e financeira do Judiciário, avaliando se os magistrados incorrem em más condutas, como julgar com parcialidade.

O “politicamente correto”, ao menos na moda, o preocupa. No mesmo 2011, também para o Conjur, Abicair lamentou a geração de advogados que não dá valor aos “bons tempos quando era politicamente correto ser bem vestido”.

“A permissividade extinguiu o paletó, depois a gravata, em seguida, as camisas sociais e hoje frequenta-se as faculdades de bermuda, saída de praia, camiseta regata e chinelo.”

Saudosa era a época em que passageiros de avião adotavam o traje de passeio completo, disse.

“Atualmente vemos homens e mulheres seminus, encostando seus corpos suados nos ocupantes dos minúsculos assentos geminados.”

Considerado conservador por alguns pares, Abicair diz ter fé, só não uma filiada a uma religião específica. Até tem formação católica, mas não é praticante e sequer fez questão de casar na igreja fez (só teve a cerimônia civil, com a artista plástica Renata Abicair).
Um jovem que praticava jiu-jitsu e se julgava um “extraordinário goleiro”, Abicair comprou a primeira grande briga da carreira jurídica no gramado, antes mesmo de ser apontado como desembargador.

Era auditor no Superior Tribunal de Justiça Desportiva quando o zagueiro Serginho, do São Caetano, tombou no Estádio do Morumbi numa partida contra o São Paulo, em 2004, vítima de uma parada cardiorrespiratória.

A Justiça decidiu que dirigentes do clube sabiam que ele tinha um problema no coração e mesmo assim o colocaram para jogar. O São Caetano acabou perdendo 24 pontos naquele Campeonato Brasileiro. “É um castigo educativo, para mostrar que não podemos assistir a outra tragédia como esta no futebol brasileiro”, afirmou Abicair.

Quatro anos depois, já como juiz, seu nome pipocou no noticiário por ser ele o relator de um processo no qual o Google, por ser dono da finada comunidade virtual Orkut, teve que indenizar uma mulher em R$ 10 mil.

Ela se disse desrespeitada por ser acusada, de forma anônima, a se prostituir para pagar a faculdade. Para Abicair, as ofensas “maculam a sua honra, sua dignidade e o seu nome”.

Seus interesses extrapolam questões jurídicas. No ano passado, em artigo para O Globo, questionou “donos selvagens” que impõem seus cães domésticos em espaços públicos, “frequentemente sem coleira e mordaça, em total desrespeito com quem não tem afinidade e prazer em conviver com bichanos”.

“Da mesma forma que um cão doméstico reage mordendo”, argumentou, “a pessoa natural reagirá com a arma que tiver ao alcance, visto que dentes humanos não são habituados a morder feras vivas”.

O desembargador negou pedido de entrevista e, pela assessoria de imprensa do TJ-RJ, disse que “não comenta os seus votos e de quaisquer magistrados”.

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