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As crianças da zika esquecidas em Alagoas, entre o futuro incerto e o medo da pneumonia

"É tanto mosquito que nem fazer uma comida você consegue. No fim da tarde, todo dia, meu marido espirra veneno na casa para tentar diminuir", diz.


Por Ana Paula Rosa Publicado 14/06/2019
BBC

Na casa da alagoana Ana Lucia Mota de Oliveira, 48 anos, ficar parado é um desafio. Sob o calor forte dos 29 graus do outono em Maceió, é preciso se mexer a todo momento para escapar das picadas de insetos.

“É tanto mosquito que nem fazer uma comida você consegue. No fim da tarde, todo dia, meu marido espirra veneno na casa para tentar diminuir”, diz.

Os insetos estão na sala, na cozinha, no quintal, e mesmo rodeando o rosto da pequena Dayara, 3 anos, sentada em sua cadeira de rodas.

“A gente precisa ficar o tempo todo batendo os pés, e sempre na frente do ventilador. E para dormir, ai de quem dorme fora do mosquiteiro”, conta Ana que, além da neta, mora com a filha Yanara, 20, o filho Yan, 25 e o marido Yuri.

Na rua em que a família mora no bairro de Tabuleiro do Pinto, na periferia de Maceió, as casas não têm esgoto tratado, a rua não tem asfalto e há muito lixo espalhado pelo mato.

“Aqui é tudo zero, bem caótico”. No terreno vizinho à casa de Ana, uma enorme montanha de lixo forma uma mistura pantanosa de restos de comida, entulho e sobras de material de construção.

Todos os membros da família de Ana já pegaram pelo menos uma das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti: zika, dengue e chikungunya. Mas nenhuma delas transformou tanto a história da família como a zika, que em 2016 atingiu Yuri, Yan, e Yanara, justamente quando a jovem estava grávida de dois meses e voltava de uma viagem ao interior do Estado, aos 17 anos de idade.

“Aqui é tudo zero, bem caótico”. No terreno vizinho à casa de Ana, uma enorme montanha de lixo forma uma mistura pantanosa de restos de comida, entulho e sobras de material de construção.

Todos os membros da família de Ana já pegaram pelo menos uma das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti: zika, dengue e chikungunya. Mas nenhuma delas transformou tanto a história da família como a zika, que em 2016 atingiu Yuri, Yan, e Yanara, justamente quando a jovem estava grávida de dois meses e voltava de uma viagem ao interior do Estado, aos 17 anos de idade.

A família do pai, ex-namorado de Yanara, paga um plano de saúde para Dayara, mas não convive com a criança.

Dayara foi uma das 82 crianças que, em 2016, nasceram em Alagoas com a síndrome congênita do zika, alteração no desenvolvimento do feto que causa diversos efeitos neurológicos no recém-nascido. O mais conhecido deles é a microcefalia, condição em que a cabeça do bebê é menor do que a cabeça de crianças com a mesma idade e sexo.

De acordo com a secretaria de Saúde do Estado, existem atualmente 614 crianças com a síndrome sob atendimento em Alagoas desde 2015, quando um surto de zika no Nordeste do Brasil foi seguido de um aumento anormal nos casos de microcefalia entre os recém-nascidos.

A síndrome congênita do zika, registrada em bebês expostos ao vírus ainda no útero, abrange outras manifestações como malformações na cabeça, movimentos involuntários, convulsões, irritabilidade, problemas de deglutição, contraturas de membros, baixa visão e audição.

Aos três anos de idade, dependente dos cuidados em tempo integral da avó, Dayara ainda não consegue sentar sozinha. Não fala, não anda, é cardiopata e está desenvolvendo glaucoma no olho esquerdo. Ana costumava esperar respostas que dessem mais qualidade de vida e oportunidades para a neta, mas reduziu a expectativa.

“O meu objetivo hoje é manter a Dayara viva o maior tempo que eu puder. As outras coisas já são um acréscimo”, diz, desanimada. Uma das causas mais frequentes de morte em crianças com microcefalia é a pneumonia, doença que assombra cada vez que Ana precisa correr com a menina para o hospital.

“Só este ano a Dayara já teve três pneumonias. Tenho muito medo por ela”, diz.

Com Dayara, Ana já viajou no ano passado de Maceió até Porto Alegre atrás de tratamentos mais modernos. Em 2019, passou uma temporada de três meses morando em Campina Grande, na Paraíba, cidade referência na pesquisa sobre a doença.

“Descobri exames que, em três anos, a Dayara nunca tinha feito”. É a avó quem cuida da neta tanto em casa quanto nas consultas e tratamentos – para que a mãe, Yanara, possa cursar a faculdade de Letras – Libras e realizar o sonho de ser professora.

“Dayara está sempre sorrindo, para ela não tem tempo ruim. É o amor da minha vida”, conta a avó, que convive também com o medo do Aedes.

Em 2019, o Estado de Alagoas voltou a registrar 48 casos prováveis de zika, quase o dobro em relação ao ano anterior, segundo boletim divulgado pelo Ministério da Saúde em abril; além disso, este ano o ministério colocou 62 cidades de Alagoas em situação de alerta para risco de surtos de dengue, zika e chikungunya. Mas Ana diz que não recebeu a visita de nenhum representante do poder público que oferecesse ajuda para combater o Aedes, tirar o lixo acumulado na rua ou mesmo distribuir repelentes, para evitar que mais grávidas sejam picadas. “A zika não sai mais na televisão. Ninguém fala mais nada”.

Nem mesmo quando Dayara nasceu, em 2016 – ano em que a Organização Mundial da Saúde declarou que a zika, a microcefalia e a síndrome eram emergência internacional de saúde – a avó sentiu que o bem-estar da neta fosse prioridade da agenda pública. “Dayara só fez exames quando nasceu e ficou 13 dias internada. Depois, não fez mais nenhum. A primeira vez que ela foi fazer um eletrocardiograma para ver se tinha problema do coração foi quando ela tinha um ano e meio”, lembra Ana.

Quando as imagens dos bebês de cabeça pequena nascidos no Nordeste começaram a correr o mundo, as histórias e personagens que se tornaram mais conhecidos eram de famílias da Paraíba e e de Pernambuco – Estados em que o número de casos foi maior.

Em 2015, enquanto Pernambuco e Paraíba registraram, respectivamente, 1.031 e 429 casos suspeitos de microcefalia relacionada ao vírus zika, Alagoas, Estado com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, percentuais baixíssimos de acesso a saneamento básico e renda per capita que corresponde a apenas um quarto da média nacional, teve 114 casos suspeitos de microcefalia, segundo o Ministério da Saúde.

Procurado pela reportagem, o ministério afirma que repassou R$ 1,3 milhão ao Estado de Alagoas entre 2016 e 2018 para a execução das ações previstas no Plano Nacional de Enfrentamento do Aedes e suas consequências. Informa também, por meio de nota, que Alagoas tem 52 serviços de reabilitação, sendo 19 centros especializados; e 31 serviços de reabilitação credenciados pelas prefeituras.

Há também uma rede de 142 unidades do Núcleos de Apoio à Saúde da Família (que prevê visitas à residência para saúde básica), em 99 dos 102 municípios alagoanos, segundo a pasta. Já a secretaria de Saúde estadual diz que tem o papel de articular com os municípios e capacitar as equipes para atender as crianças com a síndrome – o que exige especialização e constante pesquisa, já que trata-se de uma doença ainda pouco conhecida pela ciência. A prefeitura diz que monitora as crianças com a síndrome e as acolhe no grupo Ciranda do Cuidado, que prevê reuniões mensais das crianças e famílias com especialistas para orientar e tirar dúvidas.

Mas o apoio em todas as esferas do poder público às crianças está muito longe do suficiente e é alvo de muitas críticas por parte da Associação Família de Anjos do Estado de Alagoas (Afaeal), criada em 2017 para lutar de maneira mais organizada pelo direito das crianças e que representa 210 famílias afetadas pela síndrome em todo o Estado.

“A maioria das crianças até hoje não recebeu as cadeiras de rodas, e os centros de reabilitação do Estado, que são para receber todas as pessoas com deficiência, e não só as crianças com a síndrome, estão sempre lotados. Por isso que eles alegam que cada criança só pode fazer sessões de 30 minutos [de terapias], em vez de 50”, afirma a presidente da Associação, Alessandra Hora dos Santos. “As crianças que são um pouco mais assistidas são as que conseguem pagar algum plano de saúde. Pelo SUS está uma calamidade”.

Ana, avó de Dayara, foi uma das primeiras mães a participar da associação. Elas se mantêm conectadas por um grupo de WhatsApp, e compartilham o luto a cada notícia de um novo “anjinho”, apelido que elas dão às crianças que morrem por efeitos decorrentes da síndrome.

Crianças com microcefalia podem ter mais dificuldade de deglutição e mais risco de broncoaspiração – quando líquidos ou alimentos são aspirados para as vias aéreas – tornando-se mais vulneráveis a infecções pulmonares.

De 2016 para cá, já faleceram Maria Giulia, Ana Clara, João Miguel, Isabelle e Emerson, este último em maio deste ano – todos por complicações relacionadas à pneumonia. Desde 2015, 29 crianças com a síndrome congênita do zika já morreram em Alagoas, segundo a secretaria de Saúde.

Além da incerteza sobre o futuro da neta, a zika deixou outras dúvidas que continuam sem respostas para a família. Yan, o filho mais velho de Ana, está noivo há cinco anos, mas teme ter filhos por medo que o vírus da zika ainda esteja ativo em seu organismo.

“Ele teve zika muito forte e diz que tem medo porque vê o meu sofrimento, o sofrimento da Yanara”, diz Ana.

 

Fonte: BBC

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