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Concessão do Pacaembu segue lógica de shopping, diz arquiteto do Museu do Futebol

Em setembro, a gestão Bruno Covas (PSDB) e o consórcio Allegra Pacaembu assinaram um contrato válido por 35 anos de concessão do estádio


Por Folhapress Publicado 10/10/2019
Divulgação/Prefeitura de São Paulo

Nos projetos mais reconhecidos que concebeu, o arquiteto Mauro Munhoz, de 60 anos, colocou a permeabilidade entre os espaços públicos e privados e a recuperação de potências históricas dos locais como linhas mestras. Essas são características identificáveis na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, da qual Munhoz é diretor artístico, e no Museu do Futebol, localizado no estádio do Pacaembu, que tem projeto de sua autoria.

Em entrevista à reportagem, Munhoz aponta aspectos distantes desses no modelo de desestatização do estádio encaminhado pela Prefeitura de São Paulo. Em setembro, a gestão Bruno Covas (PSDB) e o consórcio Allegra Pacaembu assinaram um contrato válido por 35 anos de concessão do estádio.

A prefeitura divulga que terá ganhos de até R$ 657 milhões com o contrato. O consórcio pretende derrubar o tobogã e ali construir um edifício multiuso de nove andares. Com um prédio volumoso e uma proposta modesta de interlocução do Pacaembu com o bairro, o plano de concessão ignora o que foi aprendido com o Museu (que não será afetado pela desestatização) e alimenta uma lógica de shoppings centers e de condomínios, na interpretação do arquiteto: uma estrutura fechada que gera um entorno esvaziado e pouco seguro.

Folha de S.Paulo – Como o senhor enxerga a concessão do Pacaembu nos moldes propostos?
Mauro Munhoz – A cidade só existe quando o público e o privado têm relação bem articulada. No Pacaembu, há uma experiência virtuosa. Houve um momento em que se percebeu que era melhor que o Museu do Futebol fosse estadual, e não municipal. Quando o museu estava ficando quase pronto, em 2007, percebeu-se que o município não tinha um departamento de gestão de operadores privados tão experiente quanto o governo do estado.
Mas não pode ser só uma gestão privada. Se você tiver um bom departamento de museus que possa manter ainda o interesse público da gestão, ele pode fazer concessões de operações. Você não entrega o equipamento para que uma estrutura privada faça qualquer coisa. O equipamento continua sendo público.
O Museu do Futebol funciona bem porque é um museu do estado de São Paulo. Só que o estado de São Paulo tem um departamento de museus muito articulado e é capaz de fazer uma licitação para que uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos [IDBrasil] possa, sob sua batuta, fazer a operação. Portanto, existem formas mais virtuosas e outras mais apressadas de fazer uma licitação.

Folha – O que acha do que foi apresentado do projeto vencedor?
MM – A maior virtude da arquitetura do Pacaembu tem história. Nos anos 1910, dois urbanistas na Inglaterra, Barry Parker e Ebenezer Howard, tinham um projeto original de fazer as chamadas de cidades-jardins, com a ideia de desenhar a cidade conversando com a natureza.
O Joseph Bouvard era um paisagista francês interessante que veio ao Brasil para trabalhar na Prefeitura de São Paulo. Ele percebeu na época que os urbanistas estavam dando sopa na Europa durante a guerra e convidou o Parker para cá, que, então, foi quem desenhou o bairro do Pacaembu. E o Parker disse algo interessante: que não podíamos desenhar a cidade olhando apenas a planta, tínhamos que ver as curvas de nível. E ele desenhou o bairro do Pacaembu com vielas, ruas acompanhando as curvas de nível, respeitando as linhas de drenagem.
E então surgiu um problema: tinha uma grota, de onde brota água, que fazia uma espécie de brejo, e que era um lugar inadequado para fazer lotes de casas. E mais uma vez o Bouvard foi brilhante e disse: a grota tem exatamente o tamanho de um estádio.

Folha – O Pacaembu nasceu desse processo de transformação do território que é feito a partir de uma leitura dos elementos da natureza geológica, biológica e humana. Como configuração física e experiência histórica, de 1940 para cá, traz para a gente uma possibilidade de um Brasil que emerge das forças vivas do território.
E como essa história aparece no projeto de concessão que venceu a licitação?
MM – Acho que a concessão poderia ter sido feita de outra forma. De maneira que pudesse trazer resultado econômico maior do que está trazendo e conversar com essas dimensões históricas e geográficas.
As pessoas têm saudade da concha acústica, por exemplo [demolida em 1970 para dar lugar ao tobogã]. Acho que o maior valor dela era o de permitir, a partir do pórtico monumental ou da arquibancada, fazer a leitura do perfil original da topografia.
A concessão, tal como foi desenhada, define que no lugar do tobogã você pode colocar 40 mil metros de área de concessão. É um erro. É muito metro. Com esse tamanho, o prédio será uma hidrelétrica e não promoverá permeabilidade.
O Museu tem um desenho que, se você observar, entre o chão e a arquibancada você pode ter uma área grande. As outras áreas embaixo das arquibancadas, se escavadas, poderiam ser usadas para concessão. Você pode ter mais de 80 mil metros quadrados de concessão embaixo das arquibancadas sem descaracterizar a estrutura histórica do Pacaembu.

Folha – O senhor também apresentou uma proposta de projeto para o Pacaembu, diferente da que foi selecionada.
MM – Uma coisa interessante no Museu é que conseguimos criar permeabilidade entre os espaços públicos da praça Charles Miller e os espaços semipúblicos do Museu.
A gente fez isso porque o momento de levar uma coisa tão importante quanto o processo de transformar o futebol numa manifestação cultural, que fica de igual para igual com qualquer outra arte, é tão potente que a gente não pode desperdiçar nem sequestrar essas atividades para dentro de uma estrutura fechada, que é o pensamento dos shoppings centers e dos condomínios.
A concessão atual não aumenta a permeabilidade entre as atividades que vão acontecer na estrutura e a calçada e a praça.
Em linhas gerais, a primeira coisa que propus no meu projeto para o estádio foi transformar a estrutura que passa por baixo do tobogã em uma rua. Foi uma ideia que foi, em parte, aproveitada no projeto que ganhou. Uma via entre as ruas Itápolis e Desembargador Passaláqua. Eu propunha, além dessa, mais duas ruas.
E eu também transformava a arquibancada num grande brise. Propunha manter a geometria da arquibancada, mas suprimindo a parte entre o banco e o piso, que é o outro banco da arquibancada, e a outra parte ficaria aberta, em toda a extensão da arquibancada.
Propunha também a demolição dos muros do Pacaembu, entre outras coisas. Os muros do Pacaembu foram tombados no plano de avenidas do [prefeito] Prestes Maia. Mas isso só funciona em uma cidade rodoviarista, onde a calçada é terra de ninguém.

Folha – O senhor acredita que o novo Pacaembu terá uma lógica de shopping center?
MM – É o que está acontecendo, mas não só lá. A [escritora canadense] Jane Jacobs diz que a melhor segurança que tem é habitar a calçada. O shopping e o condomínio são soluções fáceis para resolver a segurança. Eu comparo com antibiótico. Dá um efeito rápido, mas debilita o sistema.
Toda atividade comercial que estaria dando vida e segurança às calçadas está amuralhada dentro do shopping. Sequestrar a vida das calçadas traz consequências ruins. A permeabilidade é fundamental. A janela de quem está habitando zela pela calçada.

Folha – Com a concessão, o Pacaembu seguirá o mesmo caminho de estádios privados?
MM – O desafio maior é pensar como essas estruturas grandes convivem com a cidade. O Pacaembu é um estádio que tem um convívio de sofisticação com a cidade porque o Bouvard conseguiu pensar de uma maneira interessante.
Creio que o Pacaembu é o único estádio do Brasil que não tem avesso. O problema do estádio é que ele é uma estrutura em que a frente é o campo e todo o perímetro é o fundo. Ter algo que dá as costas para a calçada em uma região densa, como é o caso do Allianz Parque, cria um pedaço ruim de cidade.
O avesso do Pacaembu é a terra. O Pacaembu não dá as costas para a cidade. Mas essa inteligência não foi incorporada na concessão. É um atraso de vida.

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